Pular para o conteúdo principal

Lembrando da magia do Amazonas

Lendo um texto maravilhoso da Carla, me lembrei de um momento mágico no meu estado, o Amazonas.

Sou eng. florestal de profissao, apesar de nao trabalhar mais na área. Logo depois de formada (finalmente formada, depois de MUITA luta) fui trabalhar a convite de um amigo no IBAMA numa pequena cidade a 300Km de Manaus. Fiquei três meses lá e foram um dos três meses mais bacanas que já vivi. Ia sempre para as comunidades ribeirinhas, pegávamos barcos e íamos viajando horas até certo vilarejo pra orientar as pessoas sobre pescas proibidas, desmatamento, ajudá-los a ver a floresta de uma outra maneira, enfim, muitas atividades ricas e gratificantes. Havia sempre uma troca e isso só me fazia enriquecer como profissional,  afinal um profissional nao é aquele que só enxerga o lado técnico das coisas, mas que aprende com os mais velhos e experientes. Principalmente na nossa área, a experiência desse povo é fundamental pra um engenheiro entender de fato o movimento da floresta.

Numa das nossas viagens, fomos a um pequeno vilarejo no rio Anebá, um braco do rio Urubu, que é um outro braco do rio Amazonas :)
Chegando lá fomos recebidos pelas pessoas que trabalhavam como agentes voluntários do Ibama na regiao e ficamos no seu flutuante. Explicando: flutuante nao é uma casa que flutua, mas uma casinha de madeira que tem madeiras leves sob seus "pés" e que por isso, paira, bóia, na superfície do rio, muito comum no norte do país. 
E essa família era maravilhosa! e os pais, era quem  nos acompanhariam nas idas aos trabalhos. Antes de irmos, eles pescaram os peixes (na hora, frescos!!) e comemos os bichinhos fritos com uma farofinha e um molho delicioso. Depois do almoco, direto pra o trabalho! Era um dia de chuva, e no nosso pequeno barquinho, uma voadeira ou rabeta (uma lancha muito muito pequena) quase morremos todos afogados porque era muita chuva e chuva forte no Amazonas, no meio do rio, nao queira nunca presenciar amigo leitor...  nos momentos mais forte da chuva, eu me pegava com Deus enquanto apertava firme o dente de alho  que tinha na mao e que Raimundinha havia me dado antes de sairmos, pra evitar que o boto tentatasse me pegar, já que "mulher menstruada nao deve  ir pro rio dona Nina" (adoro as crencas das mulheres antigas da minha terra) e dizia aos amigos no barco: calma gente, nem se estressa, porque  morrer eu sei que nao vou,  ainda hei de ser avó" mas dizia isso morrendo de medo.

Durante esse temporal, vi tanto bicho no rio, como nunca antes. Esse era um lago preservado pelo Ibama, e ali a vida selvagem impera, gracas a luta desses comunitários que querem salvar a regiao dos predadores. Tartarugas pululavam no rio, botos nadavam próximo da gente (mas acho que o alho fez efeito, pois eles ficavam longe, sem incomodar), pirarucus enormes com seus filhotes faziam seu dorso brilhar quando tinha um raio de sol, em toda a encosta do rio, havia centenas de jacarés nos observando, isso antes do sol se esconder, muitos patos com seus filhotinhos nadavam tranquilamente antes da chuva realmente engrossar, e muitos, muitos outros peixes faziam seu percurso no lago, que de tao grande, em algumas partes, nem se via o outro lado da sua margem...

Mas sobrevivemos e fizemos nosso trabalho, e pernoitamos numa outra vila. No outro dia, mais trabalho, mais multas em alguns poucos infratores e já com menos chuva, voltamos pra casa dos agentes comunitários, cansados, mas contentes com o trabalho feito. De volta pra casa, no barquinho, encontramos um dos filhos da Raimundinha, gritando no meio do silêncio do rio  que a casa deles tinha saído do lugar com a forca da tempestade...  a casa da Raimundinha nao estava mais no lugar!!! Quase tive um troco ao ver o vazio deixado pela  partida da casa daquela mulher forte que era a Raimundinha.

Fomos todos procurar a casa da pequena, dá pra imaginar isso?? A casa é presa por uma grossa corda amarrada a uma árvore, imagina só, tu vai ali no banheiro que fica fora da casa, dentro da mata, e quando volta da tua mijadinha básica, tua casa nao tá mais onde estava antes!  No mínimo, curioso...

Depois de muito procurar, os homens acharam a casinha escondida do meio de uma densa folhagem. Com a casinha da minha agradável e simpática anfitrea  já rebocada, devidamente amarradinha e flutuando no rio, fassim como deve ser, com as duas filhinhas da Raimundinha já mais tranquilas, depois de terem  ficado rodando na sala, enquanto a chuva levava a casa pelo rio, fomos todos pra dentro da casa, rir da situacao, tomar um cafezinho coado na hora e ouvir o violao do filho da Raimundinha, um menino de uns 20 anos, forte, moreno, de olho puxado e muito bonito e charmosao... entao me  lembro de ir tomar banho e foi aí que a imagem desse dia gravou pra sempre na minha mente.

A casa ficava no rio. O rio ficava no interior do Amazonas. O Amazonas está no centro da minha vida, como uma bússola que me leva em direcao sempre, ao meu eixo. É de lá que sou, é de lá que vem todas as minhas lembrancas, busco na memória sem perceber, o ritual que sei que conheco, porque sou meio índia e como disse a Carla, meio bicho também e essas coisas estao gravadas na gente, sem a gente notar. O "banheiro" da casa era na varanda, do lado direito da casinha flutuante, você tinha que puxar água direto do rio e com essa água pegar de pouquinho em pouquinho, com a ajuda de uma cuia o teu banho. Tinha um sabonete feito artesanalmente, com cheiro de ervas, tinha a mata do lado de casa e tinha baruho de bicho na mata, o rio depois da chuva, fica ainda mais bonito, e cheiroso, e ele tava lá, refletindo a luz da lua, que ia até mim. Por um instante eu podia fechar os olhos e me ver uma outra pessoa, uma índia, nao mais pela metade, mas completa, tomando banho de rio enquanto  olha pra lua, os meu cabelos ja nao eram mais pelos ombros, mas eram muito mais longos e muito mais negros e a lua envolvia a índia, e o rio a embalava, e o bicho na mata fazia barulho, e tinha a flor no cabelo, e na Vitória Régia, e tinha o boto. E...

Olha, eu nao sei por quanto tempo isso durou, esse encantamento, esse feitico, foi só o tempo do banho, nao durou muito, porque já fazia frio, Amazonas pode ser também meio friozinho no meio do rio, depois de um temporal... mas foi esse instante no qual eu vi o quanto a vida da gente tem essas pequenas magias e que basta fechar os olhos, abrir a mente e ouvir o coracao pra notar. 
Sentir a vida na beira do rio Amazonas, é uma riqueza de uma singeleza tao absoluta (se é que isso gramaticalmente existe), que eu nao consigo descrever.
Fato que foi um momento mágico. Rico demais pra mim.
Depois do banho fui encontrar o resto da família, e minha aura já era outra. Tinha o menino tocador de viola velha, que tinha até menos cordas que a viola normal, e tinha o olhar desse menino, tinha o meu colega de trabalho, encantado e feliz com a simplicidade que ele já estava acostumado nos rios, tinha o peixe frito, o chá de ervas, a casa presa e em seguranca de novo, o café fresco de novo, a lua lá fora como testemunha, tinha o céu estrelado, e o barulho de bicho na mata... 

Tem coisas que nao saem da nossa memória nunca. Gracas a Deus por isso...

Foto LINDA de Pedro Martinelli, que ama o norte...

p.s quem acompanha este blog já há mais tempo, deve conhecer esse episódio, peco desculpas por falar dele novamente, é que, é que hoje, bateu saudade de novo da minha terra...

Comentários

  1. Que aventura hein Nina! Mas lindo pensar que isso tudo faz parte de vc, tao intenso, tao especial.
    E interessante essa historia do boto, mas eu nao sabia que o alho entrava na historia. hehe
    Pirarucu e grande demais ne? Puts imagino a adrenalina de estar ali com o "bichinho", que tem mo cara de ancestral, sei la, do periodo cretacio, triassico... =P
    Eu ainda vou conhecer o Amazonas!

    Minha prima se mudou com a familia tem mais de um ano para Manaus. Ela disse que as coisas tipicas de la e barato, mas legumes sao bem caros. Brocolis la estava custando 14 reais! E verdade mesmo? Eu falei para ela que e so ela nao comer isso oras, e comer as coisas de la! hahah simples, ou nao? =)

    bjus

    ResponderExcluir
  2. Oi Chris querida!!
    sim, sim, deve ser verdade,nao sei se chega a 14 pilas,mas que esses produtos sao geralmente bem caros,isso é verdade, Manaus na verdade, é uma cidade cara, acontece que mt coisa nao é produzida lá, e vem de outras regioes do país e demora dias pra chegar porque Manaus é lá no fim do mundo mesmo... e o povo cobra o olho da cara,por tudo e tem toda essa crise ambiental... e parárá é por isso tbm que o povo de fora diz que Manaus é bom pra ganhar dinheiro, porque lucra mt, em cima da nossa pobreza e distanciamento dos grandes centros. Triste, mas é verdade.

    Um bj Chris, maninha.

    ResponderExcluir
  3. Ai, Nina, linda, como você me fez viajar neste post lembrança!
    Aliás, lembranças são o que nos acompanham seja para onde for, mesmo na fria Alemanha tão longe deste Amazonas a que se refere.
    Ao mesmo tempo que é um post sobre suas experiências de vida, relembra o folclore rico de sua região.
    Lindo post! amei!
    bjs cariocas

    ResponderExcluir
  4. Que loucura isso tudo que você escreveu, deu pra viajar junto. Incrível! Eu sempre quis conhecer o Amazonas, deve ser lindo.
    Bjs Nina

    ResponderExcluir
  5. Nooossa, Nina... Emocionou, hein! Puxa vida, emocionou, bateu, tocou, ferveu... Lindo demais isso tudo que você lembrou. Me sinto TÃO feliz por ter sido eu a lembrá-la disso tudo.
    Quantas histórias maravilhosas você deve ter pra contar. E o mais legal disso é lembrar dessa natureza selvagem que você tem...

    Fico extremamente feliz pela menção do meu nome no teu texto. É como se eu estivesse viajando com você, dentro da tua lembrança, e tivesse ido parar lá no Amazonas. Lá onde tudo aconteceu.

    E me sinto mais feliz ainda por você dividir comigo, conosco, toda essa história gigante e maravilhosa. Por você ter sido gente o suficiente (e mais ainda), por ter vivido isso com esse respeito pelas coisas todas. Que me encanta muito: "adoro as crencas das mulheres antigas da minha terra"
    Eu também!!

    Minha querida amiga, te admiro verdadeiramente!!

    Beijos grandes

    Carla

    ResponderExcluir
  6. Só quem mora na região Amazônica ou tem contato direto com a floresta, pode narrar algo tão mágico e especial quanto esse que tu tiveste.Quando saio de Belém e vou pro interior, o primeiro contato que tenho é com o cheiro do mato, é de fechar os olhos e viajar pela mata e seus infinitos encantos, e então a índia que vive em nós, povo da Amazônia,sorri.
    Beijos Nina, e obrigada pela agradável visita.

    ResponderExcluir
  7. Fui lá pro Rio Urubu com sua história... e me arrepiei com as memórias do banho na floresta. Apesar de estarmos tão longe destas lembranças, um pensamento pode nos levar rapidamente pro passado. Reviver estas emoções é tão lindo como vivê-las...
    Bjim querida!
    Márcia

    ResponderExcluir
  8. Oi Nina!!!
    Fiquei muito feliz em conhecê-la, tô passando rapidinho para te dar um "oi" mas voltarei com mais tempo pra ler tuas postagens com calma, será um prazer!!! Adorei sua visita!!! Tenha uma ótima semana!!!
    Bjus
    Bia

    ResponderExcluir
  9. Nina, viajo junto com você nestas histórias.
    Obrigada por esse momento!
    Beijos, beijos.

    ResponderExcluir
  10. Esse post está uma maravilha! Meu velho tinha um sonho que não conseguiu realizar: viajar de barco pelo Amazonas. Ele teria gostado muito, com certeza teria saboreado tudo nos mínimos detalhes, como você descreveu neste post.
    Ai, Nina, você não vai esquecer tudo isso nunca, graças a Deus.
    beijo grande,
    Berê

    ResponderExcluir

Postar um comentário