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Um menino feliz

Há um menino franzino em frente a porta, muito atento a tudo o que acontece a sua volta. Ele para em frente a essa casa de madeira e sente o cheiro de comida vindo da cozinha. Ele respira fundo. Inspira, fechando os olhos. Quer gravar aquele momento no fundo da alma. Sabe que sua memória é rica de pequenos detalhes, quase imperceptíveis para muitos. Moreninho, de pés descalços, todo machucado de tanto brincar na rua; cabelinhos encaracolados iguais aos da sua mãe. Pele queimada de sol, do sol amazonense. 

Criado na beira mar do bairrro de São Raimundo, em Manaus, sem a possibilidade sequer de se imaginar em uma infância melhor; a começar por tomar banho no rio quase todos os dias. O belo rio Negro! Que de tão escuro, de longe chega a ser azul. Não é literalmente beira mar, porque nem mar é, mas é tão bonito quanto. Ele tinha acabado de brincar de cemitério e de barra-bandeira. Ainda ontem a meninada do bairro brincava de garrafão, quando ele entrou na brincadeira, e caiu, esfolando o dedão do pé, enquanto corria com seus chinelos havainas. Ele ainda está de olhos fechados, quando a porta se abre repentinamente, e sua mãe o pega pela orelha, brigando porque ele chegou tarde com aquela cara de sonhador. Ela diz que o colocará de castigo, e dá mais umas puxadas de orelha no seu moleque preferido, empurrando-o para tomar banho.

É hora da janta. Ele vai entrando pela sala, naquele ambiente tão conhecido por ele, e que hoje está tão bonito! Sua mãe ama cuidar da casa. Ele sabe que são pobres, quando nota ser desprezado por quem mora na pista – a parte asfaltada do bairro – ele mora no beco, onde se forma um lamaçal que gruda, pesando o chinelo, em tempo de chuva. Na sala, ele vê a eletrola, a TV com o bombril na ponta da antena e a mesa de centro, sempre cheia de bibelôs que a mãe limpa com esmero. Quer se jogar no sofá e se agarrar às almofadas de retalhos, mas sabe como a mãe pode ficar brava se fizer isso sem tomar banho antes... A mãe está na cozinha, fazendo comida. Ela é dura quando precisa, mas mesmo quando bate nele, é carinhosa. Morde e assopra, como dizem.

Ele continua em passos lentos, pisando no chão encerado do corredor. Olha para o lado, vê o quarto da casinha humilde mas sempre limpa, com uma cama e um mosquiteiro. No cantinho da cama, um altarzinho, onde sempre às 18 horas, alguém tem que acender a vela para Nossa Senhora. Na penteadeira, os perfumes Charisma e Toque de Amor. Ele entra davagarinho no quarto da mãe, sem fazer barulho, e olha debaixo da cama onde está o velho bacio de louça para as emergências da madrugada, e o fedido espiral Sentinela, perto de uma caixa de fósforos para espantar os carapanãs do fim da tarde. Ele vai tomar banho finalmente. E ao se enxugar, passa o talco com pluma que a mãe exige que sejam usados: isso para ela é sinal de que ele tomou banho realmente.  

No outro dia, de manhã, vai brincar de novo na rua. De manja e esconde-esconde. Logo começa a chover, um temporal daqueles bem amazônicos: e ele e os amigos tomam banho de chuva! Ah que delícia! Aproveita, e vai para a casa de um dos amigos, que tem um pátio de azulejos, e todos escorregam de barriga e fazem corrida pra ver quem chega mais rápido do outro lado. Então, ele lembra que tem que voltar pra casa, antes que sua mãe se dê conta de que ele está fora por toda a manhã. O menino corre, limpa os pés no tapete de pincha, tirando o barro. Encontra a mãe tranquila, fazendo uns remendos em algumas de suas roupas. Ele vê os espelhos cobertos com uns lençóis, como todas as mães da rua costumam fazer. Nem tinha notado que estava „relampiando“. Alegre, sente o cheiro de bolo: 

- Menino, não bate a porta se não o bolo sola! - Grita a mãe. E ele ri. E vai tomar um copo de leite que tira de uma leiteira de lata, com um cabo de vassoura na ponta, que está em cima do bufet da mãe, naquela cozinha que é tão a cara dela...

Sim, ele ama essas cenas. E terá saudade delas num futuro não muito distante...

 

* * * 

Não. Estas belas cenas bucólicas não são minhas, mas de um grande amigo de nossa família. Ler sobre suas recordações me faz ver como nossas infâncias se parecem. Gosto do que o Jander tem pra contar, e por isso o escolhi para anunciar meu primeiro livro, com minhas lembranças de quando criança.

Por enquanto, à venda somente pelo Clube de Autores.

Clique na foto do livro para saber mais:

 



Comentários

  1. Quão doces são as lembranças de nossa infância!!!

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  2. Ohhh Nina, eu lia e visualizava tudo, como num filme, num romance, numa história dessas que a gente mergulha e se delicia com as visões, cheiros, sabores, lembranças ...
    Você também é assim, descritiva e perfeita em seus maravilhosos contos que estou louca pra lê-los em breve. Que você tenha muito sucesso e seu amigo também, são maravilhosos escritores! grande beijo e visite meu MeandYou, te espero lá.

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    1. Oi Beth, amora, muito obrigada!
      Ah, mas fui eu mesma que escrevi. Jander me deu os dados, as coisas que ele lembrava, e eu coloquei do meu jeito, esse aí que tu conhece, detalhista talvez demais, ahahahaahaha :-)
      Um beijo!

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  3. Nina, esse relato fez-me lembrar muito da minha infância também. Vivi até meus sete anos numa cidadezinha no interior do Maranhão, mas depois me mudei para o Pará, que é muito parecido com o Amazonas, acho que por isso me identifiquei tanto com a história do seu amigo.
    Perdi minha mãe recentemente e isso foi um baque tremendo pra mim, sinto falta de suas histórias... Às vezes lembro de algo e adoraria poder perguntar pra ela se minhas lembranças são verdadeiras, mas já não posso mais. Depois dessa perda, decidi escrever alguns textos sobre minha vida, mas não pretendo publicá-los, quero apenas deixar para meus filhos e netos, para que as historietas não sejam esquecidas com o passar do tempo, quando eu não estiver mais aqui pra contar pra eles..
    Parabéns pelo livro, quero muito ler seus relatos.
    Beijos

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    1. Oh minha querida! Eu sinto muito, muito pela sua perda! Que Deus console seu coracaozinho.
      Escreve sim, Day, escreve. É muito bom! Faz bem pra gente, e nossos filhos sempre vao gostar de saber um pouco mais da sua família.. Eu sou um exemplo disso: ainda bem que tenho o blog, porque muita coisa que escrevi há anos, agora percebo que já há uma certa confusao nas lembrancas. Aí, basta eu reler que lembro. É impressionante como algumas coisas vao se perdendo na memória. Daí a importância de escrever. E nao precisa publicar nada, é bom guardar tbm.
      Mas olha, se quiser publicar em forma de livro, ha varias opcoes atualmente. e gratuitas, como o Clube de Autores. E é uma diversao, viu?

      Sim, o Jander tem as lembrancas muito parecidas com as minhas, e veja, com as suas tambem. Eu nem sabia que tu era do norte, menina! Ou esqueci? Ta vendo como a gente esquece as coisas? ..... vixi!
      Um beijo querida, e compre sim o livro, dá pra ler em forma de ebook, é pelo menos mais rapido pra nós ;-) Tenho certeza que tu vai gostar da leitura.

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