Pular para o conteúdo principal

No dia a dia

O menino estava sendo puxado pelo pai. O sol era forte. Suor escorria na testa do menininho. Seu bracinho era puxado pelo pai e ao mesmo tempo, ele cravava os calcanhares na areia. Nao queria ir embora. Fiquei olhando. A sensacao de estar sendo levado sem se desejar tomou conta de mim. Me vi menina de novo. A cena voltou a minha memória. Tremi. Como é ruim ter que sair de onde se está se divertindo tanto! Tinha passado por aquilo e a cena do corpinho encurvado, nao querendo sair do lugar, invandiu meus dias. Nao gostei de lembrar que vivi isso num playground qualquer da vida. 



O menininho, o outro, o daqui, chora pra nao ir pra escolinha. Se agarra às pernas da mae, faz drama, nao quer caminhar até a escola, que fica uns 300 metros de casa. Nao quer ir de bonde, nem de bicicleta, nem de Laufrad*, nem andando, nem de carrinho de bebê. Nao quer ir. E só vai se mamae carregar no colo. Bate os pés. Dos olhos escorrem lágrimas pesadas. Chora alto. Grita. Faz os moradores dos prédios por onde passa olhar pela janela. As pessoas na rua olham pra ele. Alguns riem. Outros conversam. Ele nao quer papo. Emburrado, quase mostra a língua pra vizinha. O cachorro passa por ele e ele nao pergunta como usualmente faz: darf ich streichen?* Para no meio da calcada. A mae continua. Ele corre com lágrimas nos olhos. Levanta os bracos, a mae se mantém ereta. "Vamos andando!" E tudo se repete. Ele para, chora, ela anda, resmunga. Ele corre. Ela vai. Ele para... a beleza da rotina de toda manha.




A menininha de cabelos curtos e louros vai todo dia com o pai a escolinha. Ele a leva e a busca na bicicleta, com um carrinho preso a ela. Às vezes, com a cadeirinha na garupa, outras vezes, ela mesma pedala sua bicicletinha, ele vai atrás. Somente três anos de idade e já pedala sem rodinhas. Ela passa e diz buuuuhh pra mim. Pensa me meter medo. O pai me diz que está atrasado como sempre. Dá um hallo e um ciao* e passa apressado. Estou indo pela direcao oposta. Eles realmente estao sempre atrasados. A menininha tem uma carinha melancólica. O pai é muito bonito. Alto, olhos verdes, barba por fazer, cabelos levemente grisalhos e olhos tristes. Nao quero perguntar onde está a mae da menina. Tenho medo da resposta...



A professorinha é simpática. Tem sobrenome francês. Nao é francesa, mas o marido é do Marrocos. Ela é gentil. Mae de três filhos. Mulher mais velha. Tem voz de menina. Gosta de olhar para o sapato das mulheres. Elogia a flor que trago no cabelo. É dura quando tem que ser. Afinal, cuidar de tantos filhos de tantos outros é muita responsabilidade. É doce que nem de doce de leite quando recebe as criancas e seus pais. Pele branca, olhos azuis e bons. Se diverte com o jeito alegre da mae do menino. Se vê nos sonhos dela. Queria ser como as maes dos meninos estrangeiros, mas nao consegue, mesmo tendo sobrenome francês, é muito alema, nao dá!



Ela tem olhos azuis da cor do céu de fim de tarde. Branquinha de cabelos castanhos, sempre presos em maria chiquinha. Parece uma boneca. Outro dia me disse, enquanto brincavam de casinha: Ich föhne dir die Haare, hier o secador.* O secador? Perguntei. Você me entende? Sim. Soube depois que a mae é brasileira. A menininha fala português. Desde esse dia, nos falamos oi! - oi! Tudo bem? - Sim. E nos abracamos. As pessoas nao sabem o que falamos. Só Pedro. Mas ele só responde em alemao. 





O menininho pula de alegria. Ganhou do marido da amiga da mae, figurinhas. Monta o álbum de futebol. Separa todas as figurinhas, delicadamente. E as cola. Hoje sao autoadesivas. Mamy, hilf mir, bitte*. Lá vai a mae ajudar e lembrar. Nao tem como nao se emocionar vendo o menino que nasceu mais de trinta e poucos anos depois que a mae brincava com as mesmas coisas. Dá vontade de ter meu próprio álbum. Juntar as figurinhas, ir comprar na taberna do tio Chico. Esperar ansiosamente pela última, aquela que completaria especialmente o álbum. Trocar com os amigos. Colar com arroz ou qualquer coisa melequenta. Bater com a palma da mao emborcada, sobre as figurinhas no chao, até virá-las. Moleca de rua. Sou a menina de novo, suja de areia e brincando de corda. 
Uma das coisas boas de ser mae é ter essas lembrancas de volta...


Algumas coisas nao podem passar despercebidas no dia a dia  da gente, nao é?


***
pra entender:

* Laufrad: tipo de bicicletinha infantil sem os pedais.
* darf ich streichen? Pergunta que as criancas costumam fazer aos donos dos cachorros passeando na rua (posso fazer um carinho?)
* hallo e ciao: oi e tchau
 *Ich föhne dir die Haare vou secar teus cabelos
* Mama, hilf mir bitte: Mae, porfavor, me ajuda

Comentários

  1. Eh Nina! Delícia isso de poder prestar atenção na "vida passando" diante dos olhos. Lembranças, saudades, comparações. Tudo fica registrado, não é? Mas diz aí: esse malandro desse Pedrinho não gostava de ir pra escola, no início? Mudou de ideia?

    ResponderExcluir
  2. Sim, ele gosta ainda, mas o problema agora é só na ida Pitanga. Passa dois segundos, que virei as costas, e ele para de chorar. Tá na fase birrenta da vida... só depois que deixo na escolinha que reparo que essa rotina de alguns dias até que é bonitinha ;-)
    mas durante a birra, nao é nada bom nao rsrs

    ResponderExcluir
  3. Ninoca, adorei seu modo poético de contar o que vc vê à sua volta! São percepções de alguém que olha pra vida com sensibilidade aguçada.
    E que delicia esta lembrança dos nossos tempos de criança colando figurinhas com aquelas colas caseiras, minha mãe fazia com farinha de trigo. Nossa, quanto tempo!
    Bjs cariocas

    ResponderExcluir
  4. Acho que mamae tbm fazia alguma coisa com farinha mesmo... mas so lembro do arroz que a gente roubava da panela dela ;-)

    ResponderExcluir
  5. Ai que fofo! E o melhor e tirar poesia da rotina. Adorei ler o dia a dia desses pequenos, logo, logo sou eu =)

    ResponderExcluir
  6. Ah sim... eu ouvi falar que a fase de 2 a 4 anos e adolescencia dos "bebes"... rsrs

    ResponderExcluir

Postar um comentário